domingo, 12 de dezembro de 2010

A Morte em Vida

Não enxergava, a pobre garota. Também não podia ouvir e, sem ouvir, não aprendeu a falar. A imaginação era tudo que a permitia viver.Ah! Como imaginava a garota. Não conhecia formas, apenas o que pudera tocar. Cores vibrantes eram pintadas aleatoriamente, mas não se importava com elas, se quer sabia o que eram. Imaginava sem parar e, pela noite, deixava com que seu cérebro projetasse sozinho, em seus sonhos, todas as imagens que se esforçara tanto para criar.
Sentia o frio, o calor, o afeto, o amor. Sabia que havia algo errado, mas jamais lhe disseram o que era, não podiam. O não saber nunca fez grande diferença, a vida parecia cada dia mais excitante. Descobria novas saliências nas paredes, pelo chão. Conhecia novos aromas, novas essências. Os aromas a enlouqueciam, despertavam sua criatividade com um turbilhão de idéias, de novas formas, de sentimentos desconhecidos.
Tateava, imaginava, tateava, imaginava. A constância destas duas ações a permitiu construir e moldar seu mundo ideal. Era feliz nele. Quando algo não a agradava, apagava de sua mente e constituía uma verdade mais prazerosa.
Suas verdades eram suas, ninguém mais as possuía, ninguém mais as conhecia. Compartilhava apenas carícias, ternura, aconchego. Diferenciava cada pessoa pelo perfume e de um, gostava especialmente, o primeiro que inalara e que jamais a abandonara.
 Um dia sem que fosse avisada, parou de imaginar, também não sonhou. Sem que pedisse, foi despertada. Seus olhos doíam, suas orelhas latejavam. Sem que permitisse, seu mundo se dissolveu. Podia ver, podia escutar. Descobriu o rosto de cada perfume. Estranhou os sons que emitiam. Parou de imaginar.
Agora via blocos sobrepostos, um degrade de cores sombrias, homens se degenerando.  Agora ouvia buzinas sem sincronia, choros desesperados, chamados por socorro. Agora via e ouvia, mas já não conseguia criar.
 Com muito empenho imitou sons, uniu letras, formou palavras. Agradeceu, pediu perdão, colocou uma venda sobre os olhos e tapou as orelhas.
Já não conseguia criar. Não era mais livre, agora sabia verdades que não eram suas, não podia idear, não podia imaginar.
A pobre garota tornara-se pobre de fato. O que a mantinha viva, o que a fazia feliz, estava aprisionado em algum lugar que esquecera de procurar. Agradeceu novamente, pediu perdão mais uma vez.
De algo lhe serviu a visão: alcançou a janela, escalou uma cadeira, se atirou do 15º andar.
Livrou-se da dor. Livrou-se de verdades alheias. Livrou-se de um mundo que não era seu.
Livrou-se da morte em vida, viveu em morte.


Sofia Menegon

13 comentários:

  1. Você escreve maravilhosamente bem So!essa crônica é extremamente profunda e nos faz pensar!parabéns So!

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  2. O que falta a muita gente é sentir o mundo, como ela. Ver através de tudo isso q nos rodeia mais do q os olhos podem ver!

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  3. Vc, por exemplo, é algo q vejo de maravilhoso q vejo atualmente! Vc é linda em todos os sentidos, Sofia!

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  4. Uau, meu coracao doeu. Parabens So. Ateh quase me fez chorar, muito bom.

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  5. Eu concordo com você e com todos os que comentaram acima.
    O que vejo hoje é um número cada vez maior de pessoas se acomodando tanto nesse mundo aqui quanto nos mundos idealizados. Essa não é a intenção dos sonhos! Sonhamos para viver, vivemos para sonhar... Sonhamos para que os tornemos reais - por meio da vida...
    Enfim, foi uma reflexão, não poderia deixar em vão!
    Agradeço muito por compartilhar aqui todos esses seus pensamentos :) Você é linda mesmo, em todos os sentidos.

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  6. Outra interpretação que você pode tirar desse texto é de que quando você não dá nomes as coisas no mundo ao seu redor você REALMENTE olha para os objetos,para as pessoas ,enfim.Você olha para uma flor e "vê" a flor e não simplesmente cria um rótulo mental de "flor".E acredito que isso aconteça quando ainda somos bebes ou crianças em que não sabemos os nomes das coisas e as observamos apenas.Mas ainda assim,quando mais velhos,podemos "olhar" para as coisas,podemos "Ser" e não apenas rotular o mundo ao nosso redor.

    So,o seu texto é de uma profundidade ímpar!admiro demais!e repito:você escreve maravilhosamente bem,parabéns!

    Beijos!

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  7. O seu texto representa de maneira clássica e comovente, o que o homem tem tentado evitar em sua vida. A físicalidade das coisas, o fato de apenas ligarmos para o que vemos, é a prova viva de que melhor seria se fôssemos cegos. A cegueira nos permite ver as pessoas pelo que realmente sao,e nao pelo o que querem aparentar ser. Nao é apenas a verbalizacao de um corpo, mas o sentimento verdadeiro. Uma vez que nao se sabe como as coisas se parecem, voce tenta descobrir como a coisa é...ai que entram os sentimentos...é ai que entra o que a sociedade deveria ser, e nao o que ela de fato é!

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  8. Quando APENAS sentimos e não damos nomes e formas para aquilo que sentimos somos verdadeiros, sensoriais e temos muito mais chance de sermos felizes...o que vc escreveu é tão profundo e verdadeiro que realmente me tocou muito profundamente. Esta sua cronica mostra de uma maneira muito especial aquilo que muitos levam uma vida inteira buscando,a verdadeira felicidade que não necessita de imagens e nem de rótulos, simplesmente precisa ser sentida!!! Parábens meu amor, tenho muito orgulho de vc
    love u Juju

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  9. Viver de maneira plena é poder sentir as coisas sem precisar primeiro julgar aparências. Você me faz pensar em como é importante realmente viver e não fazer de conta.Eu amo você e toda sua essência.
    Cristina

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  10. Não me surpreendo mais com toda sua capacidade e inteligência para enxergar o mundo sem deixar de lado a sensibilidade. Não pode haver orgulho maior. Saiba que aprendo com você um pouco mais a cada dia, ainda que não perceba o quanto me ensina. Amo e admiro você e agradeço à Deus por este presente que as vezes nem sei se sou merecedor .
    Alfredo

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  11. Parabéns pelo texto Sofia.
    Avassaladora com as palavras e colocações sempre!!
    Era encantado o mundo sem a visão e audição...o que se tem é tudo o que se precisa.
    Mas com o saber vem o turbilhão de dúvidas,de cobranças,de tudo mais...
    Por que dói tanto o saber...mas fugir é realmente a solução??
    Sei não...embora seja a maior vontade...
    Mundo meu mundo seu mundo dele mundo nosso...

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  12. Essa história triste me lembrou o Gollum.

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  13. André Nespoli, isso que você comentou é Alberto Caeiro: flor é aquilo que toco, que vejo, que sinto. Esse é o raciocínio dele. E, sim, está relacionado a infância, a simplicidade e ingenuidade da criança. Caeiro vivera no campo, não era formado. Era simples ;)

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