quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Minha Nega



Era branca a sala, alguns outros tons neutros compunham o cenário sóbrio. O silêncio só não prevalecia quando algum nome era chamado pelo doutor e causava pequeno alvoroço entre os pacientes que já esperavam, há algumas horas, por sua vez. Todos sofriam do mesmo mal e ouviram dizer que aquele consultório curava pacientes em poucos minutos, sem cobrar nada por isso. “Poucos minutos e de graça? Só vendo para crer”- alguns duvidavam. 

- Maria Eduarda Mendes- finalmente chamaram-na.

A moça esperava desde a noite anterior, na porta do consultório. Adquirira sintomas que se quer sabia que o mal poderia causar: não conseguia mover o pescoço, os olhos estavam fixos em apenas uma direção, as articulações enrijeceram, perdeu as expressões faciais, não sentia quaisquer emoções e até as lembranças estavam, aos poucos, escapando-lhe. Entrou na sala de onde veio o som. O doutor era, na verdade, uma senhora vestida em trajes coloridos, esboçando um sorriso incomum para a ocasião.

- Olá, minha nega, sente-se e me diga, vive essa vida há quando tempo?- questionou sorridente, a doutora colorida.
- 26 anos, doutora, tenho 26 anos.
-Não, minha pretinha, quero saber há quantos anos desistiu de viver pra valer, há quanto tempo aceitou ser levada pela maré, sem arriscar umas braçadas na direção contrária?

A moça, que já não tinha expressões, apenas calou, sem esperança.

- Deixe-me explicar, minha flor, o mal para o qual busca a cura é a morte que você escolheu como vida.Parece não fazer sentido algum agora, não se preocupe. Levante, vou ensinar-lhe algo que sua memória talvez não consiga resgatar, mas que um dia soube fazer. Sua mãezinha, sem dúvida, ensinou-lhe isso.


Em um movimento delicado, aconchegou a cabeça da jovem no seu peito, colocou seus braços abaixo dos dela e apertou com força confortante. A ação fez escorrer algumas lágrimas dos olhos de Maria Eduarda. O rosto voltou rapidamente a ter expressões, podia olhar para várias direções, mover o pescoço e até as articulações a surpreenderam quando, involuntariamente, envolveu a doutora com os braços.

- Isso, minha nega, chama-se abraço e é a expressão de amor mais preciosa e intensa de que já se ouviu falar. Esse é o segredo; para viver a vida, e não a morte, é preciso amar, e amar, neguinha, exige atenção, dedicação, calma. Amar é desejar o amanhã, é agradecer o hoje, é sonhar. Amar é, muito além disso, sentir o respirar, sentir o pisar, sentir cada movimento de cada músculo e articulação de nosso corpo. Amar é perceber cores, texturas, sorrisos, lágrimas, certezas e incertezas, sem medo, sem rótulos ou nomes; sem julgamentos. Agora vai, sai por essa porta e vai viver.

Maria Eduarda saiu da sala aos prantos, mas, assim que colocou os pés na rua, outro sentimento tomou seu coração; sorria, a moça. Andou pelas ruas sem destino, andou observando tudo e o nada. Notou algumas crianças pelas ruas, viu seus olhos brilharem e lembrou-se, imediatamente, do abraço do qual falara, a doutora colorida.

Foi viver, foi viver... foi amar.

Sofia Menegon
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Em épocas como estas, quando clichês são distribuídos sem mesquinharia, escrever algo de diferente torna-se um desafio. Andei preocupada, achei que não encontraria tema para dissertar ou ‘viajar’ a respeito, acontecimento algum no qual me inspirar; eis que surge Trindade, cujo apelido- que em segredo resolvi atribuir a ela, e que ela atribuiu a mim- dá nome a esse texto. Que surpresa maravilhosa encontrá-la nessa vida. Minha nega alegrou meu dia com seu sorriso cativante e com o carinho que teve ao me tratar, sem se quer me conhecer. Uma desconhecida a quem quero muito bem.
Que todos possamos encontrar pessoas queridas que façam a existência ganhar algum sentido, ainda que apenas com um sorriso, com um olhar. Que todos possamos ser Trindades na vida de alguém, ainda que apenas por um dia, por apenas alguns minutos.

                              Um 2012 incrível para todos, até lá!



domingo, 4 de dezembro de 2011

Um verbo: SORRIR


O sorriso, um sorriso, qualquer sorriso.
Que consigamos acumular sorrisos, que possamos distribuí-los sem juros, de uma só vez, sem delongas. Que saiam naturalmente, intensivamente, instantaneamente. Diante de qualquer besteira, qualquer outro sorriso, qualquer tropeço; vitória. Que nasça de um choro sentido, de uma lembrança empoeirada, de um cafuné pela manhã.
Sorriso, sorrir, sorria.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Apenas Crianças Adultas

Sorrisos tímidos eram agora gargalhadas alvoroçadas. Sem maquiagens, sem adornos ou contornos, éramos a nossa própria essência, que há muito andava submersa.
Cantamos músicas do passado, dançamos melodias de ídolos da infância, resgatamos a última lembrança dos tempos em que éramos apenas crianças.
Gritamos sem receio, dissemos sem medo de más interpretações, jogamo-nos no gramado úmido da chuva. Ah, que chuva! Lavou nosso semblante preocupado, os temores, as mágoas, dúvidas, responsabilidades.
O Sol se recolhia, a Lua trazia de volta um pouco da realidade esquecida. Olhares de saudade se cruzavam, desbotavam as cores, faziam do presente memórias, nostalgia de um passado recente. 

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Inebriado Amor

Entendemos naquele instante, entendemos o motivo do nosso encontro...
Eram devaneios inebriados, idéias quiméricas. Insistimos em uma ilusão. Quisemos tocar a utopia, esculpi-la, torná-la real. Não se concretiza o abstrato, não fomos avisados.
Perdemo-nos no ímpeto do desejo e pairamos sobre o acalento mútuo dos corpos. Indolentes, estagnamos.
Da paixão se fez indiferença, do amor se fez intolerância, da vida se fez vazio.
...Suas mãos justificaram as noites turbulentas, os dias adormecidos, as vozes silenciadas. Aquietamos o fim, desconstruímos as ilusões engenhadas, despertamo-nos.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Seja o que deixei de ser!

Talvez as palavras que eu digo não sejam aquelas que você esperava ouvir. Talvez você não encontre nelas o conforto que desejava. Talvez elas soem como julgamentos. Talvez pareça que nunca deslizei, que nunca agi impensadamente. Talvez você conheça minhas razões.Mas a verdade escondida atrás de todos os ‘talvez’ é que eu temo que tome os mesmos caminhos tortuosos que tomei. Temo que vivam em você as mesmas feridas que hoje tiram meu sono. Temo que passe anos a tentar, inutilmente, apagar o passado. Temo que veja no espelho a sombra de alguém que preferia jamais ser, mas foi. Temo que haja um vazio irreparável em sua alma. Temo que seja tudo aquilo que fui um dia e que, mais tarde, se torne tudo o que sou hoje.

sábado, 21 de maio de 2011

Voz Muda

Não posso ser o que um dia desenhaste em sonho, não tenho os contornos que um desejaste tocar, não falo manso, não sou tão sutil quanto imaginaste. Compreendo a todos, aceito todos, entendo que não sejas como eu, não espero que sejas, não esperes que eu seja. Compreendo sim, mas sinto. Sinto, sofro, desatino. Compreendas-me, é meu apelo. Preciso existir ainda, preciso existir apesar da tua existência, preciso que compreendas.
Não, não sou o que ideaste. Sou aqui, sou agora, sou tudo e, para ti, sou nada. Mas essas são apenas palavras caladas, ainda que dissesse não ouvirias, farias delas outras, farias delas espaços vazios, silêncio.
 

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Minha criança,


Talvez lhe dissesse que há, para a vida, uma fórmula. Que nascemos, somos felizes e mantemos essa felicidade por toda a eternidade. Talvez lhe dissesse que o caminho é simples, que não se desiste dos sonhos, que “aquele alguém” é pra vida inteira. Talvez lhe dissesse que o amanhã sempre ilumina o ontem e que hoje jamais anoitece. Talvez lhe dissesse que lágrimas são apenas de emoção, que a tristeza é invenção dos poetas, que a loucura é privilégio dos loucos. Ah, como queria dizer que o homem é bom e confiável, que a humanidade está no caminho certo, que seus líderes sempre lhe dirão a verdade. Se eu pudesse, se eu pudesse. Talvez lhe dissesse que amigos são eternos, que a família não abandona, que sempre terá para quem voltar.
Talvez então, eu lhe dissesse que hoje o mundo está de braços abertos para todo e qualquer tipo de gente, para toda e qualquer opção filosófica, sexual, social. Talvez lhe dissesse que as guerras limitam-se ao cinema, que quando uma porta se fecha outras tantas se abrem.
Queria dizer que não sentirá ódio, que jamais desejará o mal, que nunca será egoísta. Queria ,mais ainda, dizer o mesmo sobre aqueles que vai encontrar. 
Talvez lhe dissesse que ao fim tem-se a certeza de missão cumprida, que não há arrependimentos ou desejos insatisfeitos.
Talvez lhe dissesse tudo isso, mas não posso. Não deixarei que se iluda tão cedo, que mais tarde sofra de desilusão. O que posso dizer é que nem toda lágrima, nem toda decepção e nem toda dor é em vão. Posso dizer que, vez ou outra, acreditará que tudo faz sentido e que a vida é um milagre. Posso dizer que alguns amores superarão grandes desamores e, que um dia, dirá o mesmo ao seu filho ou à criança que amar. Posso dizer e digo que lhe amo, que o observarei e que direi apenas a verdade, ainda que minha verdade seja apenas uma mentira sincera, na qual preferi acreditar.

Milagre do instante

Observei alguns milagres hoje. Vi preocupações desaparecerem, crianças tornarem-se adultos, o medo desmanchar-se em sorriso. Hoje vi a menina ser mãe, vi seu corpo movimentar para fazer ninar, vi seu calor acalentar o menino.
Filhos pais, pais avós, avós bisavós.  Todos assumiram novas funções e as exerciam com eufórica paz.
Era um silêncio satisfeito, eram olhares esperançosos, eram corações em ritmo tranqüilo. Enfim, a vida encontrara seu rumo na irracional, e, real razão de ser, existir, amar... viver.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Metrô, São Paulo e cores



Ah, o metrô! Tenho verdadeira adoração por esse ambiente. Quase tanta adoração quanto tenho pela cinzenta cidade de São Paulo. Adoração sim, enquanto tantos adotam estruturas religiosas como templos de reflexão, sempre busquei nas estações a inspiração da qual precisava e, sem que pudesse entender o porque, sempre encontrei.

Foi em uma dessas buscas que me deparei com algo inusitado: próximo às catracas do metrô, um jovem tocava, em seu violino, uma valsa enquanto um casal de bailarinos o acompanhava com uma bela dança. Fiquei hipnotizada pela melodia, pelos movimentos sincronizados dos bailarinos e pelo fato de parecer ser a única a sentir-se daquela maneira.

Pessoas passavam sem se quer notar a presença dos artistas, seguiam seu percurso sem desviar o olhar. Pareciam robôs seguindo algum comando o qual não podiam desobedecer.

Passei então a incorporá-las (as demais pessoas) à cena, aumentando, pouco a pouco, o ângulo de visão. A união de sons, movimentos, cores – quantas cores!- e vidas fez daquele momento, um espetáculo. Esqueci porque chamava de cinzenta essa cidade.

Não havia nada de cinza em São Paulo. Questionei-me porque sempre atribui essa característica à cidade, porque nunca a vi como um lugar tão cheio de vida, porque nunca enxerguei além dos prédios e construções.

Não apenas de concreto é feita uma cidade, muito mais que isso, seus habitantes são fundamentais para determiná-la, caracterizá-la. Nós somos cinzentos, aceitamos a rotina como mecanismo automático e imutável. Somos nós que limitamos nossa própria visão, nos aprisionamos, nos alienamos.

Escravos do tempo, isso que somos. Não a cidade, não. A cidade tem vida, a cidade é generosa, abriga todo tipo de gente, a cidade não dorme.

Agora, corrigindo: Tenho verdadeira adoração por esse ambiente. Quase tanta adoração quanto tenho pela multicolorida cidade de São Paulo.





Sofia Menegon

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Cinema da vida

As luzes foram apagadas e insistem em permanecer assim. Não faço mais parte das imagens, não sou mais nada além de uma espectadora que anseia por um fim surpreendente. Não há surpresas. Cenas se repetem, falas oscilam, ausência de cores. O cinema fora silenciado pelo gaguejo da melodia. Um último suspiro antes da cena final e... o filme se reinicia, a penumbra persiste. Calo-me, desisto, aceito. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Um futuro passado, sem graça!

Uma memória, já desbotada, esboçava apenas os traços de um passado que não exigia esforço para ser lembrado. Os tons vivos do presente pertenciam aos jovens. Jovens pintavam informações, pintavam suas mentes sem que a tinta ultrapassasse as linhas delimitadoras. As mãos dos jovens eram firmes. O velho da memória desbotada já tinha mãos trêmulas, já tinha voz trêmula. A memória do velho não absorvia as novas cores mas ele insistia, franzia a testa como se isso tornasse a mente mais aderente. O tempo se incumbira de deixar sua marca, em cada dobra de testa franzida, de olhos espremidos, de sorrisos forjados, o tempo se incumbira de desbotar a memória.
Fez-se do velho, chacota. Sem que se soubesse que o velho fora jovem, sem que se soubesse que o jovem será velho, fez-se piada. Piadas que desenharão traços de um futuro passado sem graça.

Jovem amor

Não há amor mais bonito que o amor inocente, que do corpo não depende.
Não há amor mais bonito que aquele contido numa troca de olhares,
na conseqüente ingênua troca de sorrisos. 
Não há amor mais bonito que o amor entre jovens que se quer sabem o que é o amor, 
que se quer têm pretensão de saber, mas o sentem.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vento cata, cata-vento

O cata-vento girou contra o vento, mais uma vez. Girou, girou em velocidade imprevisível, inconstante.  Ameaçou ceder, voltou a girar impetuoso. O vento se desorientou, persistiu, se desvairou. Desvairamo-nos. As nuvens logo estavam reunidas, desuniram-se em tempestade. Esperançou-se o fim do atroz cata-vento, fora inútil, ele era resistente, impermeável. Inundou, só inundação. O canta-vento não deu trégua. Girou, girou, girou.
Calmaria, a calmaria que antecede o pior, não a paz, o temor. Equivocou-se. O vento lembrou, o vento ventou, sem notar a direção do cata-vento, ventou majestosamente, ventou soberano, ventou destemido. Ventou. Era o cata-vento e não o vento que estava desorientado. Tantos outros cata-ventos a favor! Ventou, ventou, ventou. Deixou que girarassem contra, a favor, já não importava. Viu-se surgir a fé. Esperançou-se, novamente, esperançou-se não fim, esperançou-se a continuidade, independente, do percurso.


Dedicado a minha amiga Isabela e a sua família.